quarta-feira, março 05, 2014

Um reflexo, uma reflexão

Acordei no meio da noite precisando de um copo d´água. Desde que me mudei pro novo apartamento evito levantar no meio da noite, mas ontem estava excepcionalmente quente e como eu havia bebido cerveja algumas horas mais cedo, realmente necessitava daquela água. 
O motivo de eu não gostar de levantar no meio da noite é meio bobo. Eu tenho medo encarar espelhos no escuro. Não é o tipo de coisa que eu saio espalhando por aí. E muito menos o tipo de coisa que alguém repara, porque durante o dia eu estou sempre observando meu reflexo (desconfiadamente, mas acho que todo mundo, quando vê a cena, acredita que seja por vaidade). 
Mas acontece que uma vez, quando eu era criança, fui com meus pais e meus irmãos pra alguma cidade turística brasileira, que ja nem me lembro mais qual era, onde alugamos um chalé. Já faz muito tempo que não viajamos em família, e mais ainda que não ficamos em chalés, então faz realmente muito tempo. 
Naquele chalé havia um espelho maior do que eu (na época), e em mais de uma noite, sonhei que minha família e eu havíamos sido aprisionados no espelho. Em alguns sonhos eramos nós mesmos, em outros representações de nossos signos: um caranguejo, um touro e três escorpiões.
Bom, obviamente, sobrevivemos a viagem e ao chalé e voltamos a viver nossas vidas normalmente.
Só que no meu novo apartamento bem no meio da sala, obstruindo o caminho entre minha cama e a geladeira, colocaram um espelho igualzinho ao que havia no chalé (ou pelo menos é igual a como minha mente hoje se recorda dele). E eu sou obrigado a passar por ele no escuro, todas as noites. 
Como na maioria das vezes passo por ele capengando de sono ou embriagado, geralmente consigo ignorá-lo. Mas ontem, estava sem sono e sóbrio.E ao passar pelo espelho, algo me impeliu a deter-me por um momento e observar a figura triste e peluda que me encarava com grandes olhos negros do outro lado. 
Encostei no vidro gelado e um calafrio percorreu minha espinha. Chovia la fora. Um trovão iluminou a sala. O reflexo, de alguma forma, libertou-se de sua prisão e tomou o meu lugar. Observei minhas mãos e elas haviam se tornado cheias de rugas e calos. Minha barba mudou de cor. Havia algo escuro abaixo de meus olhos. Mas fora isso, todos os objetos, pessoas e cômodos ao meu redor permaneciam  exatamente iguais. De alguma forma eu sabia que agora estava do lado de dentro do espelho. Mas como todo mundo também estava ali, junto comigo, jamais acreditariam em mim. Encostei no reflexo novamente, tentando reverter o processo. Nada. Bati no vidro, usando cada vez mais força. Nada. Não havia o que eu pudesse fazer. E nem algo que precisasse ser feito. Afinal, tudo permanecia igual, apesar de eu estar mudado. Foi assustador. Nada pior do que a ausência de mudança.

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