quarta-feira, maio 03, 2017

São Tomé das Letras

Sexta-feira teve greve geral em São Paulo. Os ônibus e metrôs não funcionaram, então fiquei em casa trabalhando home office e a Manda não teve pacientes pra atender porque o consultório não abriu. Assim, depois de um belo dia de descanso, pegamos um táxi (nenhum uber estava disponível) até a casa do Kev ondem íamos encontrar a galera para aquela que seria a viagem mais roots de nossas vidas.Fomos em 2 carros: Ana, Raff, eu e Manda em um e Kev, Fabi e Henry no outro e em cerca de 4h, depois de uma viagem tranquila pela Fernão Dias, tendo apenas plantações de breu ao redor, chegamos cerca de meia-noite na pedregosa cidade de São Tomé das Letras.

Tínhamos combinado de ficar hospedados num hostel de um amigo do Raff, que tinha largado a vida na cidade pra virar rockstar em Santomé. Acontece que quando chegamos lá o responsável pelo lugar supostamente estava "na roça buscando lençóis pra gente". Quem passou essa informação foi um hippie maluco que tinha um terceiro olho tatuado na testa (que sonhava com o calor da Islândia, que segundo ele era mais quente que Santomé) e uma maluca de narriz partido ao meio que estavam vendo tv quando chegamos. Esperamos um pouco o suposto "responsável" chegar (mas essa palavra está longe de se aplicar a ele), mas depois de um tempão esperando acabamos só deixando mesmo nossas coisas em qualquer quarto e indo pro "roque", um local cheio de barzinhos com música ao vivo cercado de pedras, cães e malucos, onde a banda desse cara que indicou o hostel estava tocando. Compramos cervejas baratas (2 reais a long neck de Itaipava), comemos uma pizza, brincamos com os cães e exatamente as 4h20 de manhã chegamos no nosso moquifo (sério, parecia que tinham assassinado o Homem Arco-ìris no local) pra dormir, tão vencidos pelo cansaço que nem banho tomamos.

Sábado acordamos lá pelas 9h e fomos tomar café numa padoca na frente do hostel, onde pude pagar café e pão de queijo pra todo mundo gastando míseros 14 reais (sério, era um pacote gigante de pão de queijo,que sobrou até pra madruga). Depois demos uma volta pela cidade, começando pela gruta onde um branco ajudou escravos (ou índios, dependendo da lenda) que a apropriação cultural do passado transformou de Sumé em São Tomé. Depois fomos até a igreja de pedra e a famosa pirâmide, uma casa de pedra cercada por torres de pedra que supostamente fazem seu pedido acontecer assim que são derrubadas por outro turista. E o legal foi que enquanto estávamos dando um tempo ali nas pedras chegou do  nada um maluco descalço (ótimo lugar pra andar assim) tocando uma flauta e criando todo um climão élfico de Terra-Média. Esse foi o primeiro momento de magia mística do passeio.

Depois pegamos os carros e subimos até a Ladeira do Amendoim, onde é possível desligar o motor do carro, deixá-lo no ponto morto e vê-lo subir o morro sozinho. Sério mesmo, também não acreditei antes de ver pessoalmente, mas de alguma forma, isso acontece. Segundo a lenda, porque o magnetismo da Terra neste ponto é muito forte e dizem que ali é ponto de energia de um dos chakras do planeta. Ali do lado também fica a entrada pra uma gruta de 15km onde falam que está localizado um portal que leva até Machu Picchu (infelizmente, como muita gente sumiu tentando a façanha, o local está fechado atualmente). 

Demos mais uma volta pelo centro pra tomar café e comer bolinha de queijo e vimos o Ventania passando de boas pelo centro, tomamos choconhaque, compramos pingas e licores de diversos sabores e encontramos o amigo do Raff pra jantar umas pizzas. Esse cara chegou acompanhado da namorada e do...bom, do meu irmão. O cara não era só idêntico fisicamente ao meu irmão. Ele falava como ele, ria como ele, tinha os mesmos trejeitos e também tinha abandonado a vida em SP pra morar em Minas. Ele sentou bem na minha frente, me deixou em choque e passei a maior parte da janta escrevendo na cabeça o esboço de um novo conto sobre o reencontro dois irmãos que tinham deixado de se falar há muito tempo. Como eu e a Manda tínhamos deixados os celulares no hostel, tive até que arrumar um emprestado pra tirar (o que pra mim pareceu ser) discretamente uma foto do cara, porque sabia que só contando ninguém ia acreditar na semelhança. Pra se ter uma noção, mandei a foto pra minha mãe e pra minha irmã e nenhuma delas duvidou de que realmente era meu irmão. Esse foi o segundo grande momento mágico místico da viagem.

Voltamos pro nosso quarto no hostel (um novo quarto, na verdade, pro qual nos mudamos ainda sem ver o dono do lugar, que era levemente melhor e maior que o primeiro e onde pelo menos dava pra usar o banheiro - no primeiro, a tampa da privada ficava literalmente embaixo da pia, dificultando muito os trabalhos). Na verdade, o hostel era tão zuado que não fornecia nem papel (e sem o dono por ali, não tinha nem pra quem pedir) então tive que sair procurar por uma loja que vendesse. Não encontrei nenhuma, mas um bondoso vendendor de bolsas local acabou me vendendo o próprio rolo que ele tinha no banheiro dele por uma moeda de um real. Lá pela meia noite, a Manda e a Ana dormiram e eu e os demais sobreviventes saímos dar mais um rolet. Paramos num lugar pra tomar caldo de mandioca, e depois sentamos no barzinho da esquina do hostel (que ficava numa rua onde tinha um boneco do mestre dos magos do outro lado da calçada!) pra tomar umas cervejas num lugar chamado BroadUAI (e olha que se ninguém me falasse eu jamais ia entender essa piada), onde o Henry começaria a perseguir a estalajadeira.

No domingo tomamos café num lugarzinho acochegante de uma senhorinha do sul que fazia um ótimo chocolate quente e servia um bolo de nozes recheado com maçã e creme de pastel de belém. Depois pegamos os carros e fomos até a Gruta do Sobradinho. O lugar não era muito grande, mas eu que nunca tinha entrado numa gruta antes achei bem divertido. Era obrigatório usar capacete com lanterna na cabeça, tinha paredes altas, água gelada, pedras pra pular, cocô de morcego nas paredes e uma cachoeira no final. Um ótimo lugar pra um Bruce Wayne construir sua batcaverna. 
Na noite anterior, todos os casais tinham revelado os apelidos carinhosos secretos que cada um tinha dado pro seu parceiro, menos eu e a Manda. Então, só pra zuar com eles escrevemos em uma das pedras do lago que ficava ao redor da cachoeira qual era nosso apelido e só contamos isso depois que havíamos subido a montanha. Nunca pensamos que alguém seria maluco o suficiente pra descer tudo de novo só pra ver qual era o apelido. Mas é claro que o Kev tinha que ser maluco o suficiente não só pra descer, como também pra achar, tirar foto da pedra e daí em diante só me chamar desse jeito. 
Na saída da cachoeira, tinha um barzinho e uma lojinha de churrasqueiras de pedra (trouxemos uma pra ver se funciona). Lá na frente da loja, o Raff conseguiu a façanha de escorregar e derrubar cerveja na própria cara. Culpa do magnetismo da Terra, provavelmente =b.
Fizemos um piquenique por ali mesmo, com alguns lanches comprados mais cedo no mercado, bolachas e bebidas quentes. Depois, fomos pra Lagoa da Esmeralda, um lugar lindo cercado de casinhas de pedra que provavelmente seria um melhor lugar pra se mergulhar do que a própria cachoeira se tivéssemos chegado mais cedo e não estivéssemos morrendo de frio.
Na volta da lagoa, nosso carro ficou um pouco pra trás e quando chegamos no carro do Henry vimos o Kev correndo de meias, no meio da estrada, com um pedaço de árvore na mão que ele ia levar pra casa pra fazer incenso. Coisa normal que acontece sempre em São Paulo, cotidiana mesmo.

Passamos no hostel pra tomar um banho, jantamos no Bigods um xbacon maroto, alimentamos uns dogs, compramos algumas lembrancinhas e voltamos pra Ladeira do Amendoim pra ver as estrelas. E manooo do céu, que vista linda. O problema é que 7 turistas trouxas sozinhos em um lugar completamente afastado não é a melhor ideia do mundo. Muito menos se no caminho a Manda fizer o favor de ficar desenterrando histórias de assaltos de Jau ou notícias de que teve gente baleada em St Tomé na semana anterior. O silêncio dava um puta climão de filme de terror, então ficamos lá bem menos do que gostaríamos, afinal qualquer luzinha que aparecia no horizonte era um assaltante em potencial (novo conto de terror sobre grupo de amigos que se refugia de bandidos no caminho que leva até Machu Picchu em breve) e logo voltamos pro centro da cidade.
Paramos, agora com a turma toda, na BroadUAI.
Quando chegamos dois caras muito bons estavam tocando música ao vivo, mas eles tiveram que sair pouco depois porque iam abrir um show do Ventania que ia acontecer em outro local da cidade (pro qual eu queria ir, mas fui voto vencido porque o pessoal achou que a entrada custar 30 reais era caro demais). Aí duas meninas (que depois descobrimos serem esposas dos dois primeiros caras) assumiram o violão e bom, dizer que elas eram ruins seria elogio. Elas tocavam tão mal, errando e desafinando a toda hora, que em pouco tempo, cerca de umas duas músicas, o bar que antes estava lotado (a ponto de que cada casal da nossa mesa estava sendo forçado a dividir um banco de pedra), esvaziou. Uma a uma todas as pessoas foram embora, e ninguém se atrevia a entrar. Era impossível de não perceber o motivo e percebendo a tristeza na cara das minas fizemos a coisa menos sensata possível: aplaudimos. Vibramos cada vez que uma música da MPB era enforcada nas cordas de seus violões e começamos a cantar junto mais alto que elas pra que pelo menos as letras mantessem o ritmo e a concordância. Elas agradeceram e mandaram vários "caralho, vocês são foda", coisa que qualquer rockstar fala, mas que dificilmente é de coração, mas que dessa vez não restava dúvidas de que era. Logo o show se transformou num acústico, elas desligaram as caixas de som e sentaram ao lado da mesa maior pra qual havíamos nos mudado. Desenrolamos a situação.

Como o Raff fez questão de dizer (e obviamente zoei ele muito na hora por isso), "nós entendemos, também somos artistas". Ainda que cada um a seu modo, todo mundo sabia o que era ser desaprovado. E ser plateia cativa praquela dupla, por mais que lhes faltasse um pingo de talento, fazia muito bem pra alma.
De Pearl Jam a Carcará, com direito a muito Belchior (que havia falecido na noite anterior), transformamos uma catástrofe em uma das noites mais divertidas que já tivemos num boteco. Tomamos cerveja barata, garrafas e mais garrafas de pinga com mel e a estalajadeira foi literalmente colher limão do pé pra caipirinha que a Amanda tinha pedido. Foi emocionante, e a letra de "A Palo Seco" fez mais sentido do que nunca naquele momento...
"E eu quero é que esse canto torto 
Feito faca, corte a carne de vocês 
E eu quero é que esse canto torto 
Feito faca, corte a carne de vocês.."
E nessa hora aconteceu o terceiro momento mágico místico da viagem. Um cara que trabalhava comigo tinha tatuado no braço a frase "Meu coração é como um bar vazio tocando Belchior". Sempre achei incrível o quanto se podia dizer com uma única frase. E de repente, eu e meus amigos tínhamos ido parar dentro daquela tatuagem. Pouco depois, o bar começou a encher novamente. Com ainda mais gente do que tinha antes. Foi show, literalmente. Nessa altura da viagem, obviamente eu já era reconhecido como aquele que mais se importava com coisas banais como higiene e limpeza. Por isso, na madrugada, acordei com o Kev tentando jogar um cachorro de rua em cima da cama onde eu estava dormindo com a Manda (o que só não aconteceu por que o Raff, com quem eu dividia o quarto não deixou). E o mais legal foi que no dia seguinte, quando eu comentei da cena com a Manda, ela me disse que na cabeça dela tinha sido só um sonho.

Na segunda-feira, acordamos cedo, tomamos café mais uma vez nas senhorinhas pseudo-portuguesas do Rio Grande do Sul e descobrimos que o "amigo" do Raff tinha falado que ele podia dar carona pra uma menina até São Paulo. Fora o fato de que a viagem ficaria muito menos confortável em 5, a tal amiga não era exatamente uma pessoa qualquer. Ela estava de mudança pra Bolívia, levando apenas vinte reais no bolso e o Diggerydoo e o Carron que usa pra fazer o que ela mesma definiu como "tecno orgânico". Ou seja, tava cheia de tralha, não tinha grana pra ajudar na carona e o instrumento ainda estava fedendo mijo (Ela: "Meu gato mijou na minha manta ontem a noite". Eu "Ah, e tá la atrás a manta? No porta-malas?" Ela só fez que não com a cabeça e apontou pro instrumento ao meu lado).
Assim, depois de 4 longas horas em uma viagem de vidros abertos, finalmente chegamos em São Paulo. Prontos pra tomar os banhos mais longos de nossas vidas e lavar nossas roupas até o nível subatômico. 
Foi rootz. Rootz pra caralho. Muito mais do que eu sequer poderia imaginar (tanto que a Manda não quer mais nem que essa palavra seja pronunciada em casa). Mas eu não posso reclamar. Vou ficar apenas com as lembranças boas e são perrengues assim que geram boas histórias. E se tem uma coisa que eu gosto é de viver boas histórias. Do tipo que nenhum hotel de luxo seria capaz de oferecer.

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