terça-feira, fevereiro 16, 2016

Camping

A memória mais antiga que eu tenho é de um acampamento que fiz com minha família  quando era criança. Tínhamos uma velha barraca de camping de dois lugares e lembro que certa vez passamos vários dias nela.
Eu e minha irmã mais nova gostávamos de correr na grama e de brincar com um cachorro sem dono que ficava rodeando a região em busca de comida. Pedi até pra mamãe deixar ele dormir conosco na cabana, mas o papai proibiu. Disse que mal cabia a família toda na barraca, e pensando bem, reconheço que ele estava certo.
As vezes, a tenda ficava tão abafada que parecia que o suor da própria barraca escorria pra vir se misturar ao nosso. E quando chovia era pior ainda. Quase sempre entrava água na barraca, tanto pela lona de cobertura quanto pelo forro do chão. Nossas roupas e cobertas ficavam encharcadas e, no dia seguinte, sempre tinha alguém acordava resfriado. Eu gostava das noites mais frias. Era quando ficava mais fácil dormir apertado entre meus pais, sem ninguém reclamar do excesso de calor humano.
O papai passava boa parte do dia fora, o que era bom porque ocasionalmente tínhamos que nos encolher nas poucas regiões com sombra pra fugir do sol, e ele se irritava com muita facilidade. Principalmente quando estava com calor ou em algum lugar muito apertado.
Lembro de diversas pessoas diferentes passando por perto da nossa tenda durante o dia. Algumas era muito simpáticas e nos ofereciam doces e biscoitos. Outras nos olhavam feio. Alguns chegavam até a xingar minha mãe, criticando-a por ter nos levado para acampar com eles nessa idade. Na época eu não entendia a razão de tanto furor. Eu e minha irmã não achávamos ruim.
A única coisa ruim de acampar era quando precisava usar o banheiro. A gente usava um sanitário público que ficava nos fundos de uma construção que ficava a quase dois quilômetros de distância de onde meus pais tinham montado a barraca. Então eles não deixavam que eu ou minha irmã fossemos até lá sozinhos, mas também não gostavam ser acordados de madrugada pra nos acompanhar. Eu sabia que pedir para ir ao banheiro de madrugada era pedir pra levar uma surra, e aprendi a segurar minhas necessidades por bastante tempo. Mas aproveitando o fato de que meus pais tinham o sono pesado, as vezes eu me esgueirava de fininho pra fora da barraca e mijava ali por perto mesmo.
Até que um dia, depois de jantar uma marmita de macarrão com salsicha que não me fez bem, acordei com tanta vontade e pressa, que não tive outra opção a não ser tentar ir sozinho. Suando frio, desviei das pernas do meu pai e dos braços da minha mãe e deixei a barraca na ponta dos pés na direção do sanitário público.
Acho que passei quase uma hora me contorcendo no vaso, até que finalmente me limpei e corri para casa, com medo de que alguém notasse minha ausência. Só diminuí o passo, quando, no meio do caminho de volta, avistei o brilho de uma fogueira.
Eu já tinha pedido várias vezes pro meu pai acender uma fogueira pra gente se esquentar, mas ele sempre negava. Será que tinha decidido fazer uma só porque viu que eu não estava?
Por um segundo, fiquei com medo de que minha família estivesse feliz com minha ausência e aproveitando para se divertir sem mim. Claro que esse era só um medo infantil e não era nada disso. Eu só preferia que fosse.
A assistente social que cuidou de minha adoção depois do que aconteceu me disse que eu tive sorte. Que eu deveria deixar o passado para trás e ser grato por ter encontrado uma nova família. Acontece que, por mais que eu me esforce, não consigo me esquecer daqueles dias que passei acampando com a minha família bem no centro de São Paulo. E muitas vezes, ainda acordo suando frio no meio da noite, com a recordação dos gritos de meus pais, do choro de minhã irmã e das risadas dos bêbados que atearam fogo à nossa barraca.

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