sexta-feira, janeiro 24, 2014

O papel de cada um

Ele foi o porteiro mais gente fina que tive na vida até hoje. Por mais que eu odeie admitir, geralmente só passo correndo pelos porteiros. Ocupado demais com trabalho, aulas, hqs ou filmes para dar um pouco de atenção para aqueles homens que ficam lá parados por horas vigiando a rua para que possam nos abrir o portão ao chegarmos, sem que nem mesmo tenhamos que tocar a campainha. Não sei o nome de nenhum dos porteiros do prédio onde moro hoje. E de todos os porteiros que já tive, só me lembro mesmo do nome de um deles: Osmar. Era difícil não parar para conversar com ele. Ele estava sempre tão feliz. E perguntava com interesse verdadeiro sobre minha vida e o Mackenzie. 
Mas o principal é que ele era um artista. Dez da manhã, três da tarde, duas da madrugada, não importa qual fosse o turno, Osmar sempre estava com um olho na tela da pequena tv que mostrava as imagens da câmera de vigilância e outro em suas esculturas. Animais de papel machê (palavra originada da expressão francesa "papier mâché", que significa papel picado, amassado e esmagado), é tipo uma massa feita com papel picado embebido na água, coado e depois misturado com cola e gesso.Haviam Corujas, cães, gatos. Muito bonitos, com um toque pessoal e ainda assim quase reais. Na verdade acho que o contato com ele começou graças às corujas. Minha irmã chegou um dia em casa pedindo pra eu desenhar uma coruja. Perguntei porque. O porteiro pediu, ela respondeu. Era motivo o suficiente pra mim. Desenhei a coruja e ela entregou pra ele. Meses depois, corujas de papel machê começaram a me encarar do balcão de entrada toda vez que eu entrava ou saia do prédio. Meu desenho tinha sido usado de molde. E agora havia uma larga produção de aves sinistras que ele espalhava pelos apartamentos das senhoras do prédio, ávidas em adquirir suas esculturas. De qualquer forma, foi graças a esse link "artístico" que começamos a conversar. Os papos giravam sempre ao redor de algo ligado a pinturas, esculturas e Embu das Artes, um lugar que ele insistia que eu deveria visitar. Aparentemente, essa subcidade de São Paulo é um grande centro de concentração artística, com diversos museus e feiras de arte por toda parte. Mas não consegui fazer uma visita lá ainda. 
Um dia muito marcante também, foi quando ele deu uma aula no mackenzie.  A faculdade tinha umas semanas especiais de workshops, onde vários convidados eram chamados para dar aula de coisas diferentes pro pessoal. E uma garota do prédio chamou o Osmar pra dar uma aula de esculturas de papel machê. Obviamente, ele convidou a todos e lá fomos eu, meu irmão e minha irmã para a aula dele, numa sala do Mackenzie (provavelmente do curso de Design) que eu nunca tinha visitado. Foi bem interessante, apesar de que nenhum dos Picagova ter conseguido terminar mais do que uma estrutura tosca de um quadrúpede (são necessárias várias camadas de jornal e cola pra fazer as esculturas, e não havia tempo de fazer mais do que o esqueleto do bicho em uma única aula). 
Fui pros Estados Unidos, sem me despedir, e quando voltei ele não estava mais lá. E tudo que havia sobrado era o pequeno esqueleto tosco de papel em cima do armário, que eu demorei pra ter coragem de jogar fora. Até que um dia encontrei o Osmar sentado do lado no prédio, no degrau de uma pequena loja de doces. Conversamos por um tempo, ele tinha virado montador de vitrines de lojas, onde pelo menos poderia mostrar um pouco mais de sua arte para mais gente, ainda que não fosse exatamente esse o sonho. Eventualmente, acabei me levantando e indo pro prédio, deixando-o ali, provavelmente só esperando pelo próximo ser que se lembrasse dele e lhe concedesse alguns instantes de atenção. Logo depois que já estava no prédio, folheando uma hq do Justiceiro e comendo pistaches, começou a chover. E torci para que o ex-porteiro já tivesse ido embora antes do pé d´água começar a cair. No dia seguinte, levantei cedo e me arrumei pro trabalho. Desci de elevador e mandei um oba pro novo (anônimo e aleatório) porteiro, sem nem olhar em seu rosto e saí pra rua. A loja de doces ainda estava fechada, e no degrau de entrada, havia uma massa de jornal molhado, no formato do que se assemelhava muito a um homem sentado. Sorri e fui trabalhar. Até hoje não sei se foi uma piada do próprio Osmar, mas gosto de pensar que ele era mesmo um homem feito de papel picado, que me apareceu com a mensagem de que eu deveria visitar Embu das Artes. Só sei que tudo nessa vida é tão efêmero, quanto uma escultura de papel machê...

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