quinta-feira, julho 23, 2020

O culto

— Sabe o que eu tava pensando?
— Fala.
— E se os deuses nórdicos, gregos e romanos fossem só ficção?
— Ué, e não são?
— São, quer dizer, hoje existe um consenso de que são. Mas historicamente, a gente acredita que durante algum período no tempo, realmente existiram pessoas que acreditavam que Zeus era de verdade, certo? 
— Sim, que antigamente as pessoas achavam que esses seres superiores e mágicos realmente existiam e os tratavam como uma religião.
— Exatamente. A gente costuma pensar que os povos antigos rezavam, faziam oferendas e esperavam ajuda de deuses como Odin, Thor, Hermes, Poseidon e toda essa galera, certo?
— Certo.
— Mas quem garante, né? 
— Como assim?
— Bom, e se...se esses povos na verdade só consumissem as histórias e feitos desses deuses como forma de entretenimento, como se fossem uma obra de ficção?
— Quer dizer, tendo consciencia de que não passava de ficção?
— Isso.
— Sei não...
— Talvez a gente só tenha interpretado errado, saca? Acho que existe a possibilidade de que os vikings, por exemplo, realmente tivessem total consciência de que Odin era um ser fictício. E só consumissem as histórias deles porque eram divertidas. Da mesma forma que a gente consome Harry Potter hoje em dia. Eu acho que, sei lá, da forma que a informação foi passada de uma geração pra outra, acabou rolando um telefone sem fio. Algo se perdeu na tradução. 
— E você acha que literalmente todos os historiadores que já existiram simplesmente acabaram se apegando a um erro de interpretação e confundiram crença com ficção?
— Por que não?
—  É, até que faz sentido.
— Pensa comigo. Eu coleciono quadrinhos, certo?
— Certo.
— O que estou tentando dizer é: eu tenho total consciência de que o Batman, o Superman e Homem-Aranha não são reais. Sei que são personagens de ficção. Mas...vai que seilá, o mundo civilizado como o conhecemos acaba de uma hora pra outra. 
— Acaba como?
— Não importa! Bomba atômica, vírus mortal, meteoro, tanto faz. A hipótese aqui é que tudo se perde! Linguagem, história, tudo que a gente conhece! Os poucos humanos sobreviventes passam a viver como selvagens e só centenas, ou milhares de anos depois, alguém descobre minha coleção de quadrinhos.
— Suas hqs autografadas provavelmente já não teriam virado combustível pra fogueira a esse ponto?
— Tomara que não. Eu conservo muito bem meus quadrinhos. Bom, e se essa pessoa, que talvez seja até um historiador e todos os caras que vierem depois dele acharem que eu acreditava que os X-Men, a Liga da Justiça e os Vingadores existiam de verdade?
— Ele não precisaria de mais provas pra isso, além de algumas revistas?
— Bom, ele teria centenas de provas! Esse cara poderia analisar essa descoberta em conjunto com milhares de fotografias de pessoas vestidas como o Lanterna Verde ou o Homem de Ferro. Bonecos despedaçados que ele poderia achar que eram usados como amuletos. Existem dezenas de réplicas da Batcaverna, da Sala da Justiça e da Mansão Xavier mundo afora, que poderiam ser considerados por eles como altares de adoração. Dá pra encontrar muito fácil as semelhanças entre um grupo de fanboys e um culto.
— Cacete... já pensou se as piramides na verdade fossem só parte de algum tipo de Disneylandia do Egito?
— Exato! Hórus, Anubis, Seth, talvez fossem só personagens cujas histórias os jovens e as crianças gostassem de ouvir. Faz mais sentido do que acreditar que toda uma civilização acreditava que esses deuses egípicios realmente existissem, não?
— É, até que faz. Cara, mal posso esperar pelos livros de história do futuro cometendo a gafe de afirmar que as pessoas do século 21 cultuavam os deuses da Marvel.
— Pois é, tomara que sejam livros ilustrados...

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