Deixei todo mundo nervoso quando contei que a Alice viria comigo para o sítio no feriado.
Nós namoramos há quase dois anos, desde que fui morar na capital para
cursar a faculdade de Engenharia Agrícola, mas por conta da distância e dos
custos, nunca consegui trazê-la até a fazenda para que ela conhecesse minha
família.
Meus pais tem um pé atrás com qualquer coisa que seja construída na
cidade, principalmente personalidades. Eles têm medo que ela ache que somos
apenas um grupo de caipiras selvagens e desmiolados. Mas tenho certeza de que
esse é um receio bobo.
Ainda que ela seja o estereotipo perfeito da típica patricinha, que adora
roupas de marca, perfumes importados e seu local de passeio favorito é o
shopping center, tenho certeza de que assim que respirar o ar puro do campo,
vai se encantar com a beleza da vida no interior.
Sei que ela terá um contato tão grande com a natureza, que poderá até
voltar da viagem uma pessoa melhor, talvez até com menos frescuras e mimimis,
espero.
Depois de quase treze horas de viagem, em um ônibus que não era dos mais
confortáveis, chegamos em “Escapulário”, a cidade local mais próxima das terras
de minha família, um vilarejo que tem cerca de seis mil habitantes locais.
Assim que o ônibus estacionou junto à praça central, usada como
rodoviária na falta de algo melhor, logo avistei a velha caminhonete de meu pai
estacionada na frente do bar onde passei boa parte de minha adolescência.
Meus pais aguardavam ansiosamente nossa chegada para nos levar até a
“roça”, como eles insistiam em chamar nosso velho sítio.
Meu pai nos transportou através de uma estrada de terra até a fazenda,
enquanto minha mãe questionava as novidades da cidade. Ela adorava que
listássemos cada novo restaurante que conhecíamos, peça de teatro a que
assistíamos e até os filmes que estavam em cartaz no cinema.
Muitas curvas, nenhum poste de iluminação e um caminho lento e
pedregoso, faziam com que os
10 km até nossa propriedade parecessem ser um percurso muito mais
longo, e somente meia hora depois chegamos ao nosso destino.
Minha mãe tinha se esforçado para preparar um almoço delicioso: arroz,
feijão, repolho refogado e linguiças caseiras (minhas favoritas), mas a Alice
mal tocou na comida.
Julgou os pratos pela beleza, e como nenhuma opção tinha as cores
photoshopadas dos fast-foods com os quais ela estava acostumada, preferiu se empanturrar
com bolachas e barrinhas de cereal que havia trazido de São Paulo.
Tiramos um cochilo após o almoço e só levantamos no meio da tarde,
quando minha irmãzinha mais nova correu até o quarto para nos chamar para o
café.
Acho que foi até por insistência da pequena Manoela, e seu sorriso
inocente sem dentes, que a Alice aceitou tomar uma xícara do café da minha mãe.
Ela mal tocou no bolo de fubá ou na pasta de amendoim caseira, mas o café ela
adorou, e até repetiu.
Contei orgulhoso que os
grãos eram cultivados dentro do próprio sítio, e que foi minha bisavó quem deu
início a plantação, que ficava localizada nos fundos da casa. Por conta disso,
minha mãe sempre chamou a bebida de “café da vovó”, nome também adotado por mim
e até mesmo por meu pai, ainda que a nomenclatura perdesse um pouco do sentido
no nosso caso.
A Alice acabou gostando tanto da ideia que até aceitou meu convite para
visitar a plantação logo depois que terminamos de comer.
Depois de ver o cafezal e os campos onde os grãos ficavam secando ao
sol, fizemos uma trilha rápida de 2km pela mata em direção a cachoeira onde eu
costumava brincar quando criança.
Para minha grande
surpresa, ela não reclamou nada de ter que andar (muito além do que alguém que
só está acostumado a andar de uma estação de metrô a outra), do mato raspando
em suas pernas e nem dos mosquitos que fizeram dela um banquete, com direito
até a mordida no rosto.
À noite, jantamos e
conversamos com meus pais uma deliciosa galinhada servida em uma velha mesa de
madeira improvisada sob as estrelas, enquanto a Alice já começava a fazer
amizade com o Einstein, nosso vira-lata e parecia se mostrar cada vez mais
interessada nas peculiaridades da vida no campo.
O estranho foi que
horas depois, pouco antes de ir para a cama, do nada a antiga Alice acabou
aparecendo.
Afirmou que passar o feriado todo ali era loucura, que eu era insensível
por coloca-la naquelas condições e que, da próxima vez, só viajaria comigo se
fosse num voo de primeira classe em direção a um hotel cinco estrelas.
Fui dormir confuso,
incapaz de compreender como a atitude dela podia ter mudado tanto de uma hora para
outra.
Na manhã seguinte, a
Alice acordou antes de mim. Ela não estava acostumada a ter um galo como
despertador e quando lavei o rosto para me dirigir a cozinha, já me preparava
para escutar mais uma boa dose de reclamações.
Por sorte, eu estava
enganado. Quando cheguei à mesa, a Alice já conversava animadamente com minha
mãe, como se elas fossem velhas conhecidas. E ela estava aparentemente na
terceira fatia de bolo de cenoura, que comia com gosto. Ela até pediu a receita
para minha mãe! Mal pude acreditar no que eu estava ouvindo.
Depois do café, pegamos
uma carona com o meu pai até a cidade e mostrei para ela alguns dos lugares
onde passei boa parte do tempo livre que eu tinha na infância.
Subimos no coreto, onde cantei uma música sertaneja brega a envergonhando
na frente de todas as cinco pessoas que caminhavam pelo centro naquela hora.
Visitamos a vendinha do “Xavier” onde compramos alguns potes de doce de
leite como lembrança para a família dela e tomamos um sorvete no “Peralta”, “o
melhor sorvete de creme do mundo”, palavras da própria Alice.
Voltamos para casa para
o almoço e durante o trajeto de volta, o humor dela começou a se tornar volátil
mais uma vez.
Ela reclamou que o
chacoalhar da caminhonete a estava deixando com dor de cabeça e se assustou com
uma vaca que descontraidamente bloqueava a estrada. Tive que segurá-la para que
ela não fugisse correndo do carro, só porque ela achava que o bicho estava
perto demais e poderia tentar ataca-la.
Uma simples buzina fez com que a vaca saísse da frente e assim que ela
liberou espaço suficiente para passarmos, seguimos viagem.
A Alice mal tocou na
leitoa frita que minha mãe havia cozinhado, e fez cara de emburrada até durante
a sobremesa, uma maravilhosa goiabada caseira com queijo branco.
Pelo menos, o cafezinho
pós-refeição ela aceitou.
Fiquei chateado, afinal parecia que ela estava apenas confirmando a
teoria de meus pais de que não seria a pessoa certa para um cara “da roça”,
como eu.
Não que eles tivessem
muita moral para julgar minha escolha por escolher alguém de fora de nosso
meio.
Minha mãe também havia conhecido meu pai na capital e ela mesma contava
que no começo ele também não gostava muito da ideia de viver fora da cidade,
mas que com o tempo ela conseguiu convencê-lo a ficar e a ver as coisas boas
que uma vida mais tranquila e saudável tinha a oferecer.
“Conquistado pelo
estômago”, era o que ele costumava admitir, quando contava entusiasmado que os
responsáveis por sua decisão foram os segredos culinários de minha mãe.
Durante
a tarde, continuamos explorando a propriedade. A Alice parecia mais
entusiasmada do que nunca.
Como na noite anterior
ela havia reclamado de que as trilhas estavam acabando com suas roupas, sugeri
que emprestasse algumas roupas de minha mãe.
Minutos após a
sugestão, ela apareceu na porta do meu quarto vestida com algumas roupas
antigas de minha vó, pois as de minha mãe não tinham servido, e por um momento
até assustei, como se o fantasma de minha falecida avó tivesse aparecido para
nos acompanhar na caminhada.
Ignorei o desconforto inicial e logo começamos nossa escalada ao redor
da propriedade. Visitamos a plantação de morangos, o alambique desativado de
meu tio e até o cemitério que ficava no topo da montanha.
No meio da subida, a Alice quis tirar os sapatos. E mesmo com os pés
cobertos de lama, não parecia nem um pouco preocupada com machucados ou nos
insetos ou pedras nas quais poderia pisar.
A vista lá de cima era
incrível. Dezenas de tons de verde misturavam-se em uma pintura divina, que
cheirava a vida e cujo ar era tão limpo que parecia capaz de regenerar anos e
anos de uma rotina decadente no meio da poluição da cidade.
O problema, se é que
podemos chamar assim, é que esse tipo de ambiente sempre liberta minha imaginação
de tal forma que consequentemente desperta todo tipo bizarro de insight.
Me dei conta de que o cemitério onde meus
antepassados estavam enterrados ficava exatamente um patamar acima do local
onde ficava a plantação de café na montanha.
Era por isso que a
Alice estava se comportando de forma tão estranha! De alguma forma, as
convicções de gerações estavam tão entranhadas naquela terra que o próprio grão de café que nascia desse chão tinha o poder de
transformar as pessoas, e moldar seus ideais segundo os daqueles que minha mãe
costumava chamar de “os antigos”.
Não tive coragem de
falar nada pra Alice. Talvez ela nem acreditasse, mas preferi não arriscar.
Faltando pouco para
chegarmos em casa, ela já tinha começado a reclamar de tudo mais uma vez:
- Ah, que nojo! Você viu o tamanho daquela aranha? Tem remédio na sua
casa? Acho que machuquei a perna. Olha o tamanho desse corte no meu tornozelo!
E estamos a quilômetros de um hospital! Eu posso morrer com uma infecção,
sabia? Ouvi isso? Será que aqui tem cobra? Minhas costas estão doendo, não
invente nenhum lugar para a gente sair à noite que eu não aguento, hein? Não
acredito que estou vestindo isso! Uma jardineira jeans! Quem veste isso? Acho
que já não era moda nem quando sua vó era jovem! Ainda bem que aqui não tem
espelho para eu poder ver o quanto estou horrível. Falta muito pra gente
chegar? Porque vocês não dão um jeito de melhorar esse lugar hein? Estou
cansada de andar. Não sei como alguém pode querer viver num lugar desses. Já
estamos chegando? Quero ir embora daqui. Você já comprou nossas passagens de
volta?
- Calma, amor. Mais dez minutinhos e nós já chegamos. Eu te preparo uma
bela xícara de café e aí você decide se quer ir embora, ok? Quem sabe você não
muda de ideia e decide ficar aqui pra sempre, hein?
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