Existe um buraco bem no meio de Jau. Bem ali onde costumava ficar um lugar que teve muita importância na minha infância. Não tem casa nenhuma ali, só terra e nada. Como se alguém tivesse recortado o que havia ali. Mas eu ainda posso ver a antiga casa de meus avós, como se ainda estivesse ali. Uma velha construção rosa (que eu via como mansão) que se destaca de todas as outras. Vejo as árvores ao redor, onde eu brinco de me esconder (não sei de quem, já que meus amigos não entram ali). Vejo as torres e a grade baixa da entrada. O portão de ferro que não segura ninguém. A escadaria branca e as portas de correr de vidro que aguardam no topo. Meu avô sorri da sacada. Não porque ele ache algo engraçado, mas porque ainda não se acostumou com a prótese nova. Entro na sala e sento no sofá de couro para observar (talvez pela milésima vez) os livros da estante. Coleções infantis e infanto-juvenis. Meu personagem favorito é um sapo (ou um pássaro) que usa uma boina de francês. O quarto de meus avós é meu também. Qualquer um entra ali a qualquer momento. Tem uma TV (com um controle remoto embutido que encaixa no topo) onde eu assisto Cavaleiros do Zodíaco ou Tintin enquanto os adultos assistem novela na sala. Lá tem um cofre que eu nunca abri, E um aparelho de som que ao invés de músicas toca vozes que te ajudam a relaxar. As vozes me assustam um pouco. O número da delegacia está anotado ao lado do telefone. Isso me assuta um pouco também. O armário guarda doces, e fica trancado com um chaveiro de pata de coelho. A copa tem uma mesa que só é usada em eventos especiais. Tem fotos antigas e um baú num canto. Não me admira que esse lugar atraia bandidos. É cheio de baús, cofres e tesouros. O quarto da "minha mãe" é muito parecido com o "meu". Tem três camas, uma grudada ao lado da outra, sem nenhum espaço para transitar entre elas. Estantes cheias de revistas, talvez outro baú. É aqui que eu guardo minha lata de panetone cheia de brinquedos de Kinder Ovo e a sacola onde guardo meus gibis. Todos meus gibis ainda cabem em uma única sacola. Escrevo meu nome neles e a numeração deles na minha coleção. Em breve não será mais possível contá-los. De vez em quando, minhas tias decidem abrir o baú e se livrar de coisas que não querem mais. Adoro herdar esse tipo de coisa. O último quarto antes da copa pertence ao inimigo, está sempre trancado e eu nunca entro ali. Na sala minhas memórias se confundem, acho difícil que realmente coubesse tanta coisa ali. Vejo um sofá de frente pra TV, uma cadeira de balanço, uma poltrona enorme onde minha vó faz palavras cruzadas com os óculos presos em seu pescoço por uma cordinha. Ali também tem uma mesa de jantar (onde minha tia me ensinou a ler), uma foto enorme da minha mãe jovem na parede. Tem até uma pia, que não parece pertencer a esse tipo de ambiente. Eu aprendo a abrir nozes e quebro meu dedo do pé na porta do banheiro. O banheiro é gigante e tem uma janela que dá para uma árvore que me dá medo, pois sempre imagino que vai ter algum estranho ali. O banheiro é estranho: tem um bidê, mertiolate e nada que segure a água do chuveiro. A cozinha tem uma mesa onde normalmente servem batata frita oleosa (minha batata favorita até hoje) e carne de panela. Minha comida favorita. Se eu tiver sorte vai chover, e vão fazer bolinho de chuva açucarado. Minha sobremesa favorita. Tem duas geladeiras na cozinha. Uma delas é antiga e dá choque se você não segurar no pano do puxador para abri-la. A outra tem torta de frango gelada e sorvete. Passo pela porta de cozinha e saio para "os fundos". Tem uma mesa de pedra bem no meio do quintal. Subo nela pra fugir do fox paulistinha. Outra tia toma sol numa esteira ali perto, sem se incomodar com o cachorro nem com a ausência de uma piscina. Tem outro banheiro aqui fora. A descarga é uma corda. Minha mãe costumava contar da vez que teve pular da janela dele para a pia do tanque do lado de fora. Sempre quis fazer igual um dia, não lembro se um dia cheguei a conseguir e agora acho que é tarde demais. Aqui fora é gigantesco. Tem bananeiras, árvores mais velhas que meus avós, jabuticabeiras e uma garagem que está sempre fechada. Mais pro leste tem um cercado com mais árvores de espinhas negras e um galinheiro abandonado. Da garagem sai uma estrada de pedras (acho que um dia ela foi coberta por uvas) que dá em um outro portão de aço, mais próximo da rua. Tem muito lugar pra se esconder aqui. Faz tempo que não visito essa casa fisicamente. Mas as vezes ela aparece meus sonhos, como se nunca tivesse deixado de existir. Hoje, mendigos, ladrões e saqueadores acabaram com lugar. Saquearam até não sobrar nada. As paredes tombaram. Não sobrou nada. Nem a tv com o controle encaixável, nem os livros do pássaro francês, nem o cofre nem os baús. Ouço meu pai estacionar uma belina azul na frente do sobrado. Hora de voltar para casa.
São quase uma da manhã. Amanhã é segunda-feira e ainda não consegui dormir.
Caí num buraco. E vim parar na Rua Saldanha Marinho.
PS: Quando fui procurar uma foto do buraco pra ilustrar esse post, acabei descobrindo que a imagem exibida no Google Maps ainda mostra a casa de meus avós, como se ela nunca tivesse saído dali. Quase chorei, eu não sou o único que ainda se lembra.
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