Eu e minha esposa nos mudamos do interior para São Paulo há cinco anos, e durante todo esse tempo jamais tivemos grande contato com nossos vizinhos. Na verdade, o mais correto seria dizer que não tivemos contato algum.
No decorrer deste período, passamos por três prédios diferentes e talvez por falta de tempo, ou mais sinceramente, de vontade, nunca trocamos mais do que três palavras com as pessoas com quem compartilhávamos nossas paredes, tetos ou pisos. "Olá" era a saudação mais comum, e "Bom dia" ou "Boa noite" eram o máximo de intimidade que tivemos com esses seres sem nome, que viviam tão próximos e, ao mesmo tempo, tão longe.
Mas isso mudou quando nos mudamos para o primeiro andar um velho edifício no centro da cidade. Lá o prédio era menor (apenas cinco andares, com dois apartamentos por andar), muito velho e a maioria dos moradores parecia estar ali há viver ali há tempo quanto a própria estrutura do edifício.
Como bons sobreviventes do século vinte, nossos novos vizinhos ainda demonstravam certo interesse pelos demais moradores. E a princípio, fomos muito bem recebidos. A vizinha do andar até fez um bolo de limão em formato de coração e nos deu de presente como forma de nos dar as boas-vindas em nossa primeira semana pós-mudança.
Outros nos perguntaram interessados quem éramos, de onde vínhamos e nos contavam sem pressa sobre suas próprias vidas, animais de estimação e familiares.
A vida era boa e o apartamento, o melhor onde já havíamos morado. Eu até tinha o apelidado de “castelo” graças a suas principais características serem ele ser espaçoso e velho.
Mas não demorou para que a Dona Realidade, nossa vizinha de baixo, nos recordasse de que nem todos eram anjos, e que todo castelo tem seu fantasma.
Na noite do primeiro sábado, por volta de 23h da noite, acordamos assustados ao ouvir, pela primeira vez, o som de nossa campainha. Levantamos com medo, pois já era tarde e quase nenhum conhecido sabia nosso novo endereço.
Ao olhar pelo olho-mágico, não notamos a presença de ninguém, e, somente após muito tempo e ainda com certo receio, voltamos a dormir.
No dia seguinte, nossa vizinha de andar nos contou que a fiação da campainha era muito antiga e que ela ocasionalmente disparava sozinha. Mas que talvez fosse a argentina solteirona que morava no segundo andar, que quando bebia saía apertando as campainhas dos vizinhos a procura de companhia. Disse que ela era uma pessoa complicada, que era melhor manter distância. E foi exatamente o que fizemos.
Ficamos aliviados e voltamos a viver normalmente nossas vidas, sem grandes preocupações.
Alguns dias depois, durante um sábado a tarde, ouvimos umas batidas na porta. Abrimos e não havia ninguém lá fora, mas durante a noite senti uma movimentação estranha nas cortinas. Certas vezes, parecia que o próprio encanamento fazia uns barulhos sinistros.
Algumas semanas depois, na madrugada de um domingo, acordamos ao ouvir o som uma música tocando em um volume insuportável oriunda do segundo andar.
Desde que nos mudamos para a capital, sempre moramos no centro. O que significa que estamos acostumados com barulhos altos de festas nas proximidades, jovens bêbados gritando pelas ruas e até mesmo o som de prostitutas fazendo algazarra quando acreditam que não são devidamente compensadas por seus serviços. Para que algo nos incomode, o barulho tem que ser extremamente perturbador.
Eram cinco da manhã, e a própria Dona Augusta, a garota mais alternativa e badalada da cidade, já tinha ido dormir.
Entretanto, no andar de cima, a Dona Encrenca arrastava seus móveis de um lado para o outro e tocava repetidamente a mesma música com o volume no alto, parecendo não se importar nem um pouco com aqueles que teriam de levantar cedo no dia seguinte.
Minha mulher Amélia foi a primeira a acordar. Agitada, tentou encontrar sossego em todos os demais cômodos da casa, mas não teve sucesso. O som cobria a sala e o quarto de visitas, tanto quanto a escuridão da noite. E não era só a música que incomodava, parecia que a mulher também estava mudando todos os seus móveis de lugar, e podíamos escutar enquanto ela os arrastava de um lado para o outro.
Acabei acordando também, enquanto ela se trocava para subir reclamar do barulho com a mulher.
Ouvi, ainda de pijamas, seus passos pesados na escada em direção ao piso superior e as batidas graves que deu na porta, mas a estrangeira nem se deu ao trabalho de atender a porta, fazendo com que minha esposa descesse ainda mais irritada de volta para nosso quarto.
Era minha vez. Peguei uma vassoura e comecei a bater no teto para ver se a velha se tocava. Nada.
Peguei uma jaqueta no mancebo e a ira acumulada de uma noite de sono perdido, subi ainda segurando a vassoura na mão e bati com todas minhas forças na porta da mulher.
Apertei mil vezes sua campainha, mas estava quebrada. Gritei, mas não obtive nenhuma resposta (nem mesmo dos demais vizinhos. Será que não havia mais ninguém naquele andar?).
Entretanto, eu estava decidido a não sair dali sem o silêncio que tinha ido buscar. Continuei esmurrando a porta, com minha mulher já gritando do andar de baixo para que eu parasse, pois já estava me comportando como um maluco, e voltasse para casa. Era tarde. Ninguém me deteria agora.
Se socos não eram o suficiente, meus chutes ela ia escutar. Ataquei a entrada do apartamento com todas as minhas forças, até que a porta, que era tão velha quanto o resto do edifício, foi derrubada por um de meus pontapés.
Nada poderia me preparar para o que eu vi lá dentro.
Toda a mobília da sala estava espremida contra a parede. E a argentina se encontrava sentada de pernas cruzadas bem no meio de um grande círculo formado por sangue e o que pareciam ser entranhas de animais (que suspeitei pertencerem ao cachorro da vizinha do sexto andar, desaparecido há poucos dias). Os açougues mais sujos do centro nunca federam tanto. E a coleção de garrafas de bebida vazias ao redor do círculo fariam inveja ao mais exigente dos frequentadores dos bares vizinhos.
O corpo nu e flácido da mulher estava coberto de um líquido escuro que parecia ser sangue seco formando desenhos de runas bizarras. Ela cheirava a álcool como se tivesse tomado um banho com o conteúdo de todas aquelas garrafas e me olhava enfurecida por eu ter a tirado de seu transe, com uma de suas mãos ainda dentro de sua vagina. Acho que ela estava se masturbando.
Durante alguns segundos, a bruxa me observou como uma criança que foi descoberta roubando um pouco da cobertura do bolo de aniversário de seu irmão, e ficou sem reação.
Mas o fator surpresa durou muito pouco.
Segundos depois, a criatura já estava projetando-se na direção de meu pescoço, com uma velocidade tão inumana que eu mal soube se ela tinha pulado ou voado até o local onde eu me encontrava.
Instintivamente, fechei os olhos e apontei o cabo da vassoura para a frente.
A fúria cega da bruxa fez com que ela se atirasse direto na direção de minha precária defesa, e o cabo da vassoura perfurou o olho direito da velha.
Senti minha vassoura ficando pesada, e a mulher começou a se debater, jogando seu corpo de um lado para o outro para se libertar, como um peixe fisgado por uma lança.
Revirei os bolsos de meu casaco em busca de algo que pudesse usar para afastá-la de mim e encontrei a caixa de fósforos que eu tinha usado horas antes para acender o fogão.
Afastei a bruxa para trás, com os ombros, de volta para dentro do apartamento, enquanto afundava ainda mais a vassoura em seu crânio.
Acendi rapidamente um fósforo e o joguei no chão da sala, que continuava encharcado em cachaça, vodka barata, sangue e rum e rapidamente o corpo da mulher se transformou em um amontoado sujo de cinzas.
Roda viva, do Chico Buarque, continuava tocando, a todo volume e no repeat.
Entrei e, com cuidado para não pisar no piso molhado, tirei o aparelho de som da tomada.
Em seguida, chutei o tapete que dizia "Bienvenidos" para dentro; espalhei o que restou das cinzas com a sola de minhas havaianas e recolhi a vassoura, que jazia imóvel e banhada em sangue, jazia caída próxima ao corredor.
Depois saí, tentando sempre não esbarrar em nada, e encostei a porta.
Ao chegar em casa, tomei um banho e voltei para a cama.
- Vai ficar tudo bem agora? - Amélia perguntou.
Ding Dong.
Ding Dong.
Ding Dong.
- A bruxa morreu – respondi.- Agora só falta consertar essa maldita campainha.
No decorrer deste período, passamos por três prédios diferentes e talvez por falta de tempo, ou mais sinceramente, de vontade, nunca trocamos mais do que três palavras com as pessoas com quem compartilhávamos nossas paredes, tetos ou pisos. "Olá" era a saudação mais comum, e "Bom dia" ou "Boa noite" eram o máximo de intimidade que tivemos com esses seres sem nome, que viviam tão próximos e, ao mesmo tempo, tão longe.
Mas isso mudou quando nos mudamos para o primeiro andar um velho edifício no centro da cidade. Lá o prédio era menor (apenas cinco andares, com dois apartamentos por andar), muito velho e a maioria dos moradores parecia estar ali há viver ali há tempo quanto a própria estrutura do edifício.
Como bons sobreviventes do século vinte, nossos novos vizinhos ainda demonstravam certo interesse pelos demais moradores. E a princípio, fomos muito bem recebidos. A vizinha do andar até fez um bolo de limão em formato de coração e nos deu de presente como forma de nos dar as boas-vindas em nossa primeira semana pós-mudança.
Outros nos perguntaram interessados quem éramos, de onde vínhamos e nos contavam sem pressa sobre suas próprias vidas, animais de estimação e familiares.
A vida era boa e o apartamento, o melhor onde já havíamos morado. Eu até tinha o apelidado de “castelo” graças a suas principais características serem ele ser espaçoso e velho.
Mas não demorou para que a Dona Realidade, nossa vizinha de baixo, nos recordasse de que nem todos eram anjos, e que todo castelo tem seu fantasma.
Na noite do primeiro sábado, por volta de 23h da noite, acordamos assustados ao ouvir, pela primeira vez, o som de nossa campainha. Levantamos com medo, pois já era tarde e quase nenhum conhecido sabia nosso novo endereço.
Ao olhar pelo olho-mágico, não notamos a presença de ninguém, e, somente após muito tempo e ainda com certo receio, voltamos a dormir.
No dia seguinte, nossa vizinha de andar nos contou que a fiação da campainha era muito antiga e que ela ocasionalmente disparava sozinha. Mas que talvez fosse a argentina solteirona que morava no segundo andar, que quando bebia saía apertando as campainhas dos vizinhos a procura de companhia. Disse que ela era uma pessoa complicada, que era melhor manter distância. E foi exatamente o que fizemos.
Ficamos aliviados e voltamos a viver normalmente nossas vidas, sem grandes preocupações.
Alguns dias depois, durante um sábado a tarde, ouvimos umas batidas na porta. Abrimos e não havia ninguém lá fora, mas durante a noite senti uma movimentação estranha nas cortinas. Certas vezes, parecia que o próprio encanamento fazia uns barulhos sinistros.
Algumas semanas depois, na madrugada de um domingo, acordamos ao ouvir o som uma música tocando em um volume insuportável oriunda do segundo andar.
Desde que nos mudamos para a capital, sempre moramos no centro. O que significa que estamos acostumados com barulhos altos de festas nas proximidades, jovens bêbados gritando pelas ruas e até mesmo o som de prostitutas fazendo algazarra quando acreditam que não são devidamente compensadas por seus serviços. Para que algo nos incomode, o barulho tem que ser extremamente perturbador.
Eram cinco da manhã, e a própria Dona Augusta, a garota mais alternativa e badalada da cidade, já tinha ido dormir.
Entretanto, no andar de cima, a Dona Encrenca arrastava seus móveis de um lado para o outro e tocava repetidamente a mesma música com o volume no alto, parecendo não se importar nem um pouco com aqueles que teriam de levantar cedo no dia seguinte.
Minha mulher Amélia foi a primeira a acordar. Agitada, tentou encontrar sossego em todos os demais cômodos da casa, mas não teve sucesso. O som cobria a sala e o quarto de visitas, tanto quanto a escuridão da noite. E não era só a música que incomodava, parecia que a mulher também estava mudando todos os seus móveis de lugar, e podíamos escutar enquanto ela os arrastava de um lado para o outro.
Acabei acordando também, enquanto ela se trocava para subir reclamar do barulho com a mulher.
Ouvi, ainda de pijamas, seus passos pesados na escada em direção ao piso superior e as batidas graves que deu na porta, mas a estrangeira nem se deu ao trabalho de atender a porta, fazendo com que minha esposa descesse ainda mais irritada de volta para nosso quarto.
Era minha vez. Peguei uma vassoura e comecei a bater no teto para ver se a velha se tocava. Nada.
Peguei uma jaqueta no mancebo e a ira acumulada de uma noite de sono perdido, subi ainda segurando a vassoura na mão e bati com todas minhas forças na porta da mulher.
Apertei mil vezes sua campainha, mas estava quebrada. Gritei, mas não obtive nenhuma resposta (nem mesmo dos demais vizinhos. Será que não havia mais ninguém naquele andar?).
Entretanto, eu estava decidido a não sair dali sem o silêncio que tinha ido buscar. Continuei esmurrando a porta, com minha mulher já gritando do andar de baixo para que eu parasse, pois já estava me comportando como um maluco, e voltasse para casa. Era tarde. Ninguém me deteria agora.
Se socos não eram o suficiente, meus chutes ela ia escutar. Ataquei a entrada do apartamento com todas as minhas forças, até que a porta, que era tão velha quanto o resto do edifício, foi derrubada por um de meus pontapés.
Nada poderia me preparar para o que eu vi lá dentro.
Toda a mobília da sala estava espremida contra a parede. E a argentina se encontrava sentada de pernas cruzadas bem no meio de um grande círculo formado por sangue e o que pareciam ser entranhas de animais (que suspeitei pertencerem ao cachorro da vizinha do sexto andar, desaparecido há poucos dias). Os açougues mais sujos do centro nunca federam tanto. E a coleção de garrafas de bebida vazias ao redor do círculo fariam inveja ao mais exigente dos frequentadores dos bares vizinhos.
O corpo nu e flácido da mulher estava coberto de um líquido escuro que parecia ser sangue seco formando desenhos de runas bizarras. Ela cheirava a álcool como se tivesse tomado um banho com o conteúdo de todas aquelas garrafas e me olhava enfurecida por eu ter a tirado de seu transe, com uma de suas mãos ainda dentro de sua vagina. Acho que ela estava se masturbando.
Durante alguns segundos, a bruxa me observou como uma criança que foi descoberta roubando um pouco da cobertura do bolo de aniversário de seu irmão, e ficou sem reação.
Mas o fator surpresa durou muito pouco.
Segundos depois, a criatura já estava projetando-se na direção de meu pescoço, com uma velocidade tão inumana que eu mal soube se ela tinha pulado ou voado até o local onde eu me encontrava.
Instintivamente, fechei os olhos e apontei o cabo da vassoura para a frente.
A fúria cega da bruxa fez com que ela se atirasse direto na direção de minha precária defesa, e o cabo da vassoura perfurou o olho direito da velha.
Senti minha vassoura ficando pesada, e a mulher começou a se debater, jogando seu corpo de um lado para o outro para se libertar, como um peixe fisgado por uma lança.
Revirei os bolsos de meu casaco em busca de algo que pudesse usar para afastá-la de mim e encontrei a caixa de fósforos que eu tinha usado horas antes para acender o fogão.
Afastei a bruxa para trás, com os ombros, de volta para dentro do apartamento, enquanto afundava ainda mais a vassoura em seu crânio.
Acendi rapidamente um fósforo e o joguei no chão da sala, que continuava encharcado em cachaça, vodka barata, sangue e rum e rapidamente o corpo da mulher se transformou em um amontoado sujo de cinzas.
Roda viva, do Chico Buarque, continuava tocando, a todo volume e no repeat.
Entrei e, com cuidado para não pisar no piso molhado, tirei o aparelho de som da tomada.
Em seguida, chutei o tapete que dizia "Bienvenidos" para dentro; espalhei o que restou das cinzas com a sola de minhas havaianas e recolhi a vassoura, que jazia imóvel e banhada em sangue, jazia caída próxima ao corredor.
Depois saí, tentando sempre não esbarrar em nada, e encostei a porta.
Ao chegar em casa, tomei um banho e voltei para a cama.
- Vai ficar tudo bem agora? - Amélia perguntou.
Ding Dong.
Ding Dong.
Ding Dong.
- A bruxa morreu – respondi.- Agora só falta consertar essa maldita campainha.